quarta-feira, 19 de maio de 2021

Minimalismo: Sem Título, 1960-75 (Parte I)

 Todos nós as vimos, estivemos em sua presença: aquelas de tipo calado, pensativo. Você sabe, aquelas que têm a força interior do Kevlar, que nunca sentem necessidade de se exibir ou de comprometer princípios sólidos, e têm uma certa aura que impõe respeito. Em minha experiência elas nunca são berrantes, sempre se apresentam bem e têm um estilo discreto que transforma todos à sua volta em idiotas tagarelas. Têm uma qualidade ligeiramente fria, indefinível.

Estou falando, é claro, sobre as esculturas minimalistas. Aqueles cubos e retângulos tridimensionais de bordas retas, implacavelmente austeros, feitos de materiais industriais, pousados no meio do assoalho de uma galeria, ou de uma parede, dominando o espaço e a nós. Elas são um produto dos anos 1960. Como as passeatas estudantis e o amor livre. Com a diferença de que essas concisas obras de arte estão mais ligadas à contemplação reflexiva do que ao despertar de emoções. Elas têm uma impassibilidade que era a antítese de toda a frivolidade e a conversa vazia que tinham lugar no mundo à sua volta.

O minimalismo é o produto de muitas influências, que vão desde a Pennsylvanian Railway até o surrealismo de André Breton. Há muito da fria estética modernista da Bauhaus na mistura minimalista, bem como uma boa dose de construtivismo russo. E apesar de toda a sua aparente passividade, essas esculturas têm na realidade uma estreita relação com a arte performática, com você, o espectador, fazendo o papel do performer. Porque na mente dos artistas envolvidos, suas despojadas obras de arte só estavam verdadeiramente "ativas" ou vivas quando nós, a plateia, estávamos na sala. Só então suas esculturas podiam desempenhar a tarefa para a qual haviam sido criadas: afetar o espaço em que se situam, e, de maneira decisiva, as pessoas dentro dele. Não se tratava de simplesmente admirarmos sua elegância angulosa: tínhamos de reconhecer como sua presença nos transformava, a nós e ao espaço em que estávamos.

É com algum temor que uso a palavra "escultura" para descrever as obras minimalistas tridimensionais, pois em geral este termo foi banido pelos artistas envolvidos em razão de sua associação com a arte da ilusão. Era isso, a seus olhos, que era a escultura tradicional, pela qual matérias-primas são manipuladas para parecer alguma outra coisa (por exemplo, um pedaço de mármore moldado na forma de uma figura humana). Isso era uma abominação para os minimalistas, uma turma literal. Se faziam um objeto com madeira, aço ou plástico, então era isso que ele era, um objeto de madeira, aço ou plástico, nada além disso. Eles sugeriram várias palavras alternativas que lhes pareciam descrever melhor suas criações. Uma das primeiras favoritas foi "objetos". Bastante razoável, mas pouco descritiva; afinal, toda escultura é um objeto. As duas sugestões seguintes sofriam do mesmo problema: eram excessivamente literais. A primeira era "obra tridimensional" e a segunda, "estrutura". Por fim (sem dúvida em desespero), ofereceu-se "proposta". Além de ser uma palavra bastante humilde, especulativa em qualquer circunstância, era completamente sem sentido quando se estava apresentando um cubo de metal com 2,5 metros quadrados de lado. Isso não é uma proposta; é uma afirmação. Assim, por conveniência, vou contrariar os desejos deles e incluir todas as criações espaciais minimalistas descritas neste capítulo na mesma categoria: esculturas.

De certa maneira, a arte produzida pelos minimalistas não difere de nenhuma arte produzida em qualquer outro tempo. Arte é sempre, em certa medida, uma tentativa de criar ordem a partir do caos. Ela pode envolver os princípios metódicos de organização dos sistemas de grade de De Stijl, ou os planos chatos encadeados do cubismo. Até o niilismo anárquico do dadaísmo pretendia livrar o mundo da deterioração e da decadência para permitir que a ordem de um novo mundo fosse estabelecida. O objetivo é sempre o mesmo: pôr a vida sob controle. No caso dos minimalistas, o desejo de pôr a vida em ordem foi simplesmente um pouquinho mais intenso que o dos movimentos artísticos precedentes. O elenco é todo norte-americano, todo do sexo masculino e todo branco, e poderíamos dizer que isso, em sua regularidade, rigidez e natureza redutiva, é bastante minimalista.

Trata-se principalmente de mais um dos clubes de cavalheiros da arte moderna, o que neste caso não é difícil detectar quando examinamos a arte associada ao movimento, obviamente masculina. Os artistas envolvidos tinham predileção por obras de arte severas, dotadas de uma fria qualidade mecânica e executadas com uma atenção obsessiva ao detalhe. No entanto, a mão e a presença do artista são quase imperceptíveis. Eles são distantes, sua arte sendo com frequência montada como um produto industrial. Quando os minimalistas faziam esculturas - o que ocorria na maior parte do tempo -, as peças que produziam não tinham nada do romance associado ao esforço humano necessário para entalhar um bloco de pedra. Sua mãos não sangravam nem sua testa suava. Talvez as de alguma outra pessoa o fizessem - aquela incumbida de soldar, aparafusar ou instalar sua obra -, mas não as dos artistas.

Eles operavam mais à maneira dos arquitetos: desenhando projetos, dando ordens e supervisionando a produção. Não há nada de errado nisso; o grande mestre flamengo Peter Paul Rubens tinha um grande número de assistentes fazendo suas pinturas para ele. Mas essa ajuda era para aumentar a produtividade (prova de que a mistura de artista e homem de negócios não é uma criação de Warhol, Koons, Hirst), e por isso ensinava sua equipe a imitar seu estilo. Os minimalistas estavam tentando fazer o oposto. Como os artistas pop norte-americanos, eles queriam eliminar todas as evidências de si mesmos, livrar sua obra de qualquer traço de expressão pessoal, subjetividade ou autoria.

Seu objetivo era compelir o espectador a lidar com o objeto físico que tinha diante de si sem ser desviado pela personalidade do criador. Alguns, como Donald Judd (1928-94), chegaram a parar de dar títulos às suas obras, pois poderiam distrair a atenção do espectador. Assim, vemo-nos diante de vastas quantidades de obras de Judd com o mesmo nome, Sem título, em geral apenas com a data em que o trabalho foi feito como guia para estreitar qualquer busca. Isso pode parecer estúpido, mas Judd, como os outros minimalistas, acreditava em remover todo detalhe irrelevante, dizendo: "Quanto mais elementos uma coisa tem, mais sua ordenação torna-se o ponto central da obra e portanto desvia da forma".

Judd emergiu como artista pintando grandes quadros expressionistas abstratos em que muitas vezes sobressaía uma intensa cor de sangue chamada vermelho-cádmio. No devido tempo ele abandonaria o expressionismo abstrato e o cavalete, mas nunca deixaria de usar o vermelho-cádmio. Sua razão para se afastar da tela baseou-se na filosofia minimalista. O problema com a pintura de quadros, a seu ver, era a incapacidade do espectador de ver uma tela e a imagem nela pintada como uma só entidade. Quando olhamos para uma pintura- mesmo que seja uma obra abstrata monocromática sem relevo - pensamos somente na imagem. Não pensamos naquilo sobre o que ela foi pintada. Por que o faríamos? Não é isso que interessa. Mas quando vestimos uma camisa de manhã, ou nos secamos com uma toalha, pensamos no material e no que porventura esteja estampado nele como uma propriedade integrada. E era essa noção de "unicidade" ou "integridade" que Judd buscava para unificar sua arte como um objeto único, abrangente. Ele encontrou sua resposta na escultura.

Sem título (1972) é uma caixa de cobre aberta, polida, com pouco menos de um metro de altura e pouco mais de um metro e meio de largura. Judd pintou o lado interno da base com um esmalte de sua cor favorita, vermelho-cádmio. E, bem...só isso. Sem título não simboliza nada e não sugere nada. É uma caixa de cobre com uma base vermelho-cádmio. Por outro lado, é uma obra de arte. Mas afinal qual é seu propósito? A resposta é: apenas ser vista, apreciada e julgada puramente em seus termos estéticos e materiais - a aparência que tem e o que nos faz sentir. Não há nenhuma exigência de "interpretar" a obra - não há nenhum sentido oculto a buscar. O que, a meu ver, a torna sem dúvida libertadora. Dessa vez não se requer nenhum truque ou conhecimento especializado, há apenas uma decisão a tomar: você gosta dela ou não? Eu gosto.

                                    Sem Título, 1972, Donald Judd. Tate Gallery, Londres.


Acho fascinante sua simplicidade, a superfície texturizada da caixa de cobre quente e ressonante, os ângulos fortes de seu contorno dividindo com elegância o espaço circundante com precisão de laser. Ande em direção à caixa de cobre e você verá um vapor vulcânico vermelho elevando-se como neblina de seu topo aberto - enfatizando o contorno nítido da caixa. Se você se debruçar sobre ele e examinar seu vazio, verá que o efeito de neblina criado pelo vermelho-cádmio encheu o volume com uma luz nebulosa, como um tardio pôr do sol de verão. As paredes internas de cobre parecem ter sido mergulhadas em vinho tinto. E é assim que você se sentirá após contemplar seu interior reflexivo por algum tempo, pois a princípio você vê dois cubos, depois três, e por fim um corredor deles à medida que a superfície reluzente do cobre opera sua mágica ótica.

Nesse momento você provavelmente recuará e fará um exame apropriado da maneira como a caixa foi feita (por técnicos, segundo as especificações de Judd). E verá todas as pequenas imperfeições, a textura encaroçada do cobre, as amolgaduras e os arranhões. A maneira como os lados não se alinham perfeitamente e como uns dois parafusos ficaram enterrados demais. Essas são as imperfeições da vida, que não podem ser escondidas por mais que nos esforcemos. Recue e ande em volta da caixa, e você ficará pasmo com a maneira como o cobre intensifica sua percepção das mudanças na luz ambiente, a qual por sua vez aumenta a sensibilidade a todo o seu ambiente físico. Depois, ao se afastar para olhar alguma outra coisa - e isso eu garanto -, você dará uma última olhada antes de ir embora. E sempre se lembrará de ter visto a caixa de cobre de Donald Judd, porque ela é simplesmente bela.

Judd resistiu a qualquer coisa que pudesse interferir na natureza dos materiais, ou reduzir o caráter puramente visual da experiência do espectador. O que essa obra faz, o que todas as esculturas de Judd fazem em maior ou menor medida, é forçar o espectador a entrar no tempo presente. Não há nenhuma distração. Judd pensava que toda a ideia de artistas explorando a noção de acaso havia sido plenamente realizada por Pollock, com seus borrões fortuitos. Parecia-lhe óbvio que "o mundo é 90% acaso e acidente"". Esse era seu ponto de partida. Essa era a razão por que havia simplificado seu trabalho: eliminar o acaso.

Ele se ariscou, porém, com suas "peças pilha" , como o trabalho de 1967 Sem Título (Pilha), que parece uma dúzia de prateleiras não sustentadas que se projetam da parede uma sobre a outra. Fazer uma escultura fragmentada quando se tem o objetivo primordial de apresentar um objeto único isento de complicações é arriscado. Mas o artista executa isso com firmeza. Cada prateleira, ou degrau, é feita de ferro galvanizado e coberta de tinta industrial verde. As doze unidades, todas feitas numa oficina siderúrgica em Nova Jersey, são idênticas. Judd não poderia estar indo mais longe para se afastar dos grandes gestos pictóricos dos expressionistas abstratos.

Ele estava reagindo contra o mito romântico segundo o qual o movimento impetuoso do pincel de um artista podia comunicar de alguma maneira uma verdade interior mística. Judd era um arquirracionalista. Estava usando a repetição para solapar a ideia de que absolutamente todos os movimentos pictóricos são de alguma maneira significativos e notáveis. Isso, ele pensava, só podia ser encontrado na unidade abstrata. Com Sem Título ( Pilha), Judd conseguiu fazer com que doze elementos individuais parecessem uma só coisa. Na verdade, há 23 diferentes elementos. Há os doze degraus e os onze espaços entre eles. Cada um dos degraus tem 22,8 centímetros de profundidade e todos estão a 22,8 centímetros de distância um do outro. Diferentemente do que ocorre na escultura tradicional, não há nenhuma hierarquia nessa obra; o degrau inferior (o plinto) tem o mesmo valor que o de cima ( a coroa de glória). A coesão de todas as coisas - e nisso reside o brilhantismo de Judd - é assegurada por algo invisível. Ele chamou isso de polarização; eu chamaria de tensão.


                                                Sem título (Pilha). Donald Judd. MoMA.

Uma ideia semelhante pode ser encontrada nas pinturas de Frank Stella. Ele era quase uma década mais jovem de Donald Judd, mas havia seguido uma trajetória semelhante, começando como expressionista abstrato, e compartilhava muitas das frustrações de Judd com relação às limitações da arte de seu tempo. Aos 23 anos, Stella havia optado por uma versão enxuta do expressionismo abstrato, em que se firmaria como um grande artista. Dorothy Canning, uma curadora extremamente respeitada do MoMA, havia notado as Pinturas pretas do jovem Frank num ateliê em Nova York em 1959 e se encantara com sua simplicidade e originalidade.

Uma delas, intitulada O casamento da razão e da esqualidez, II (1959), consistia em duas imagens em preto e branco idênticas postas lado a lado. No meio de cada imagem, uma fina linha de tela não pintada corria pelos dois terços inferiores da pintura, fornecendo seu ponto central. Em volta dela, na forma de uma moldura de porta (ou de uma letra U de cabeça para baixo), Stella havia pintado uma grossa linha preta. Em seguida repetira esse processo, expandindo a imagem de maneira concêntrica: uma grossa linha preta pintada na forma de uma moldura de porta, seguida por uma fina área de tela em branco que corria em torno da forma pintada. O resultado foi um padrão que lembrava um terno risca de giz.


                                    O casamento da razão e da esqualidez, II (1959). Frank Stella. MoMA.

Canning decidiu incluir o trabalho de Stella numa exposição que planejava montar no museu para exibir tendências emergentes na vanguarda norte-americana. Junto com suas pinturas, ela incluíra Combinações, de Rauschenberg, e Alvos e bandeiras, de Jasper Johns ( que tinham sido uma inspiração para Stella), bem como o trabalho de vários outros artistas. A exposição Dezesseis Americanos (MoMA, dezembro de 1959 a fevereiro de 1960) iria se tornar parte do folclore da arte mundial, vista como o momento em que a arte moderna escapou do domínio das pinturas emocionais dos primeiros expressionistas abstratos. Os críticos não se mostraram muito entusiasmados, em particular com relação às pinturas de Stella, descritas por um deles como "inexprimivelmente enfadonhas". Não foi essa a opinião de Judd. Ele sabia exatamente o que Stella estava tentando fazer porque procurava fazer o mesmo com a escultura. Era uma literalidade, uma clareza; ou, como disse Stella: O que você vê é o que você vê. A solução de Judd foi reduzir os elementos: simplificar. A de Stella foi "simetria - tornar a coisa toda igual". Era uma abordagem minimalista.

Stella, como Judd, queria erradicar todo componente de ilusão de suas pinturas. Fez isso tanto em preto e branco quanto em cores, com obras como Hyena Stomp (1962). Ele usou onze cores (tons de amarelo, vermelho, verde e azul), aplicadas sequencialmente num padrão labiríntico, que espirala a partir do centro até um ponto final no canto direito superior que perturba sutilmente a simetria da composição. A tela mostra Stella brincando com a ideia de sincopação, em que o ritmo escapa inesperadamente de sua própria uniformidade. Com o nome de uma faixa do músico de jazz Jelly Roll Morton  https://www.youtube.com/watch?v=pntzw3G-ZCw , na qual foi inspirada, ela demonstra também quanto Stella havia se afastado das origens do expressionismo abstrato. Embora suas pinturas sejam inteiramente abstratas e expressivas, são claramente premeditadas. Pollock acreditava em deixar o inconsciente aflorar com ímpeto e na adesão ao automatismo dos surrealistas, Stella estava mais próximo da arte conceitual. Ela não fazia nada sem planejamento e uma boa dose de pensamento racional. A seu ver, era realmente o pensamento que contava; a pintura podia ser feita por qualquer um. O impacto causado por Stella sobre o minimalismo foi considerável. Ele forneceu estímulo intelectual a Judd e fez para o escultor Carl Andre(1935) um comentário que mudou a vida do artista.
                                  Frank Stella. Hyena Stomp (1962). Tate Gallery, Londres.